terça-feira, 26 de abril de 2011

Vinte e três diias , algumas imagens e tantas leituras depois

A ausência de post é sempre conotativa. Nunca é apenas denotação. O retorno, se necessário, também o é. Se necessário for retornar.

Algumas imagens de cinema de imagens sobre as quais escrever em momento seguinte: "Blow Out", de De Palma;e "A Lei do Desejo", de Almodóvar.


Escolher uma cena/sequência em cada um

1) A sequência final de "Blown Out", com toda a implicação dela, com tudo o que nela reverbera.
2) O primeiro número musical de "A Lei do Desejo", com tudo o que nela tem de artifício

Para depois, sempre depois. Muitos textos adiados para sempre.

Volto com leitura, portanto:

"..acreditamos que há, no que se chama poesia, forças vivas , e que as imagens de um crime apresentadas em condições teatrais adequadas funciona para o espírito como algo infinitamente mais temível que o crime"

Artaud maio de 1933 em O Teatro e seu Duplo

domingo, 3 de abril de 2011

manhã de domingo

De uma aluna: "por que sempre desconfio da veracidade documental de documentários sem entrevista?"
  
De um professor: "por que você confia na veracidade das entrevistas? Elas podem ser simuladas ou só conter invenções".


Duas coisas ligeiras:

    1) a pergunta da aluna pressupõe um plus de confiança na palavra dos entrevistados em documentário.

 Não é qualquer palavra, nem a do locutor, nem de pessoas a conversar entre si, mas a palavra de alguém para outra pessoa situada, em geral, atrás ou ao lado da câmera: o direcionamento do olhar e da palavra-resposta-tesmunho para um ouvido curioso e interessado nessa palavra. 

Essa troca de olhares, esse elo, essa comunicação, por essa perpectiva da aluna, é a garantia da veracidade.: justamente aquele direcionamento de olhar que, no cinema narrativo tradicional, seria a quebra da crença.

Disse um colega da aluna: O documentário começa quando alguém olha para a câmera e revela a presença de outras pessoas naquele lugar.

Por essa lógica, todo filme reflexivo, mesmo se essa reflexividade for encenada (e sempre é), é a travessia para o documentário.

O curioso desse plus da palavra em primeira pessoa no documentário, com olhar direcionado para alguém da equipe (raramente diretamente para a câmera e para nós), está nessa resistância do verbal em um mundo e tempo nos quais a revelação está associada à evidência e à perícia (não ao testemunho transformado em relato e em relato transformado em retórica).

Revelação = técnica + ciência. 

A palavra seria, portanto, e mais que a imagem, sinal de subjetivação. Resistência às máquinas de visualização . Talvez essa valorização da palavra como documento de verdade, mais que documento, procure na palavra uma retomada de narração e fabulação,  uma compensação para a perda da experiência e de seu compartilhamento, como coloca Walter Benjamin em O Narrador.

A historiadora argentina Beatriz Sarlo, com o conhecimento do processo histórico posterior a Benjamin, contrapõe-se ao diagnóstico de extinção do compartilhamento. Ela localiza a partir dos anos 70 uma inflação do eu, que estaria nos anos 90 e 00 em um processo já de colapso hiper-inflacionário. Isso se manifesta na historiografia e em outras ciências humanas na tercerização da produção de relações apartir de observação e pesquisa para o testemunho direto de quem viveu a experiência. Falar em primeira pessoa, por meio de entrevistas e depoimentos, torna-se o caminho para a verdade.
Voltemos à entrevista no documentário ou ao documentário de entrevista. Nada contra. Colocar-se em relação verbal é fundamental em qualquer experiência. Toda a questão não está na entrevista, mas em sua formalização, em seu ritual, em seu procolo, em um modo dela ser realizada. Em suma, com todos os riscos de emprego do termo, o que importa, rigorosamente, na entrevista é a mise en scène.

Aposentemos o termo entrevista para o documentário. Chamemos de conversa curiosa.  A  troca de nome já esvazia a armadura e a indumentária da entrevista. Objetivo: tirar essa conversa de uma formalidade autômata e anômaloa necessitado da respiração de uma troca e de uma convivência, mais que de um questionário, de modo a tirar as pessoas dos sofás e dos bancos,  às vezes filmadas com a câmera na altura de suas virilhas, com mulheres de saia mais preocupadas em esconder as pernas do que em estar ali  não apenas de corpo presente. Objetivo: desengessar a armadura do quadro, a frontalidade psicopolicial de investigação sobre segredinhos, sobre intimidades, sobre o particular que entrega a chave.

Um pouco mais de lateralidade na troca e menos de frontalidade confessional-testemunhal. Mais a cena e menos o íntimo. O documentário como convivência pública, política, afetiva e efetiva, despido do fetiche do íntimo, do personal, de um certo DNA do afeto, da pele e dos gestos, com câmera indiscretas coladas a poros e rugas para efetuar proximidade.

Mais distância.

Proximidade afetiva não é vampirização do corpo, uma câmera não é uma boca sugadora de pele, sequer um microcóspio. A câmera é a medida de uma relação e de uma proximidade física entre dois corpos. Daí que lentes de aproximação, zooms, essas estratégias que alteram a distância focal, mas mantêm a respeitosa distãncia entre os corpos de quem filma e é filmado, são sempre trapaças da mise en scène

São permissividades técnicas possibilitadoras de vantagens para quem filma e de exposição á vulnerabilidade de quem se coloca diante da câmera, aumentando a responsabilidade de quem filma e também os riscos para quem é filmado

Relativização: tudo depende de quem é filmado.

Respeito, mesmo em cinema, em documentário, assim como na vida, é dialógico. Não se trata de sentimento absoluto e generalizável. A forma de filmar ditadores, torturadores, homofóbos e neonazistas não é a mesma de se filmar outras pessoas e a forma de filmar outras pessoas não é a mesma de filmar tantas outras. 


     2) Tanto no comentária da aluna como na resposta do professor está em jogo um índice de confiabilidade da imagem e da palavra. Crer ou não crer. A imagem e a palavra tornam-se potencial sintomas de trapaças, elementos de desconfiança, que são manifestações só possíveis se tomarmos palavras e imagens como documento de qualquer coisa, não como reação a certa contingência de uma forma talvez só possível de acontecer daquele exato modo naquela contingência específica


                                                                                     ***

"Um campo em que a imagem prolifera é o científico". Frase de Martine Joly, dela apenas porque li no livro (dela) sobre análise de imagem, perspectiva dos signos, que voltou a estar na onda em nossas novidades teóricas tão retrô (em qualquer segmento, do neo-bazanianismo ao neo-semanticismo, dos nouveau-realistas aos nouvelle mise-en-scenéfilos).

A frase é de Joly, mas poderia ser de qualquer um, é uma frase qualquer, informativa-constatitva O que importa nela é perceber como Lumière estava errado quando, frustrado com a falta de utilidade científica do movimento da imagem, decretou seu futuro muito breve e efêmero. A imagem científica, que tanto interessava Bazin, é a imagem do futuro. E talvez o futuro da imagem

Games reproduzindo sondas navegando por artérias e canais intestinais. Ganha quem detectar o tumor. Imagem de dentro.

O cinema já mostrou algumas vezes o corpo humano por dentro, seja com naves científicas miniaturizadas, seja para seguir a trajetória de uma bala, mas o avanço das fronteiras para as imagens científicas, suponho, acarretará uma séerialização e narrativas por dentro do corpo humano, para além dos documentários médicos

Cronenberg ficava do lado de fora


                                                             ***

sexta-feira, 1 de abril de 2011

subjetivo e sub objetivo

Amigo pede mais subjetividade. Mas tudo já é tão sub objetivo. Temo que o sub, se inflado, descola-se. E nesse descolamento o subjetivo desvairzado avizinha-se de um autismo sub-abjeto. O que se chama, ou a que se clama, de subjetivismo, convenhamos, em algum nível sub-objetivizável

narrador e personagem

narrador e documentário

Desfile de personagens bons de contar histórias sobre si mesmos em tantos documentários. Necessidade de recuo histórico. O Narrador, de Benjamin.

"São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente".

Preservação de narradores, de si mesmos quase sempre.

Devidamente é termo a dificular essa relação: com o dever de narrar dentro dos conformes mínimas de organização de fatos em forma comunicativa

Estamira narra devidamente?

Anotar para pensar melhor depois

vaca encalhada e leite coalhado

Uma vaca encalhada, para além da possível compaixão gerada nas pessoas de espírito verde, é um entrave no sistema. Uma vaca tem uma função social e econômica. Encalhar é um acidente, caso ela não tenha tido a intenção de encalhar para desviar-se de sua função, um obstáculo à produção. Algo não está ocorrendo segundo os conformes, as regras, o método estabelecido para certo funcionamento.


Avacalhar é encalhar com intenção. Portanto, é desfuncionalizar, não por acidente, mas por atentado. Toda atitude de avacalhação posta-se contra o rendimento de uma consensual conformação de atitudes e de métodos, ou seja, contra uma forma de funcionamento de qualquer sistema ou determinado espaço social-cultural-econômico. 

Alguns filmes e diretores em ação no fim dos anos 60 e começo dos 70, em São Paulo, Rio e Salvador, avacalham com o discurso e com  a forma fílmica, construindos planos selvagens em suas inventividades e relacionando esses planos com outra lógica articuladora (ou sem lógica aparente). 

Antes de responderem imediatamente a um contexto histórico de presente asfixiado e ensaguentado, vinculam-se à uma vertente artística de encalhe de vaca, de atentados contra os modos corretos, segundo a perspectiva da comunicação de informações-emoções do comércio cinematográfico, ou seja, contra o critério estético do lucro

No entanto, O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos, em vez de atentados contra o comércio, foram acolhidos nas máquinas de calcular. Frescor pop esquizóide, um disjunção ainda com pontos de referências e, apesar dos parênteses e hiperlinks, ainda com noção de desenvolvimento, ainda que não linear, não causal, não conduzido por uma bússola

A vaca encalha por opção, mas dá o leite ali mesmo, na lama, e o leite sai coalhado.

Porque leite de vaca encalhada coalha

Serge, Nick e Wim

(...) Vem também de alguma coisa que o cinema pode e que apenas ele pode (melhor que a pintura), porque (o cinema) é uma arte figurativa, isto é, repousa sobre a possibilidade de fazer "retornar" as figuras, fazê-las voltar voltar de um passado no qual representaram para alguém alguma coisa única.


Serge Daney ("Nicks Movie", em A Rampa, pag 224)

É por isso que a atitude que consiste em criticar NICK´S MOVIE por razões morais me parece, ela também, tacanha, senão injustificada. O que é abjeto no cinema é a mais valia fugurativa, a "sobreimagem" que um autor resguardado tira do espetáculo de um ator exposto (exposto ao ridículo, à indecência, à morte), é a ignorância de não reciprocidade do contrato fílmico. Mas o que acontece se o ator exposto, que foi também um autor, que entende os dois lados (both sides), suscitou esse espetáculo, se ele o quis? Se ele também deu esse espetáculo? Diante de Ray, há um outro autor, introvertido, ou melhor, pouco à vontade: Wenders. Entre eles, o jogo está à mesma altura, porque eles têm um ponto em comum: são "poseurs"

Serge Daney ("Nicks Movie, em A Rampa, pag 225)


É certo que ao remontar o filme, Wenders traiu alguma coisa: ele traiu o filme de Przygodda (montador do filme, que havia feito uma montagem pouco montada), o documento puro e duro (exibido no Festival de Cannes). Podemos deplorá-lo, claro. Mas é certo que, ao fazer isso, Wenders encontrou o verdadeiro tema de seu filme, nem a morte de Ray, nem a vertigem da filmagem dentro da filmagem, mas a verdade de sua relação com Nicholas Ray.

Serge Daney ("Nicks Movie", em A Rampa, pag 227)