domingo, 3 de abril de 2011

manhã de domingo

De uma aluna: "por que sempre desconfio da veracidade documental de documentários sem entrevista?"
  
De um professor: "por que você confia na veracidade das entrevistas? Elas podem ser simuladas ou só conter invenções".


Duas coisas ligeiras:

    1) a pergunta da aluna pressupõe um plus de confiança na palavra dos entrevistados em documentário.

 Não é qualquer palavra, nem a do locutor, nem de pessoas a conversar entre si, mas a palavra de alguém para outra pessoa situada, em geral, atrás ou ao lado da câmera: o direcionamento do olhar e da palavra-resposta-tesmunho para um ouvido curioso e interessado nessa palavra. 

Essa troca de olhares, esse elo, essa comunicação, por essa perpectiva da aluna, é a garantia da veracidade.: justamente aquele direcionamento de olhar que, no cinema narrativo tradicional, seria a quebra da crença.

Disse um colega da aluna: O documentário começa quando alguém olha para a câmera e revela a presença de outras pessoas naquele lugar.

Por essa lógica, todo filme reflexivo, mesmo se essa reflexividade for encenada (e sempre é), é a travessia para o documentário.

O curioso desse plus da palavra em primeira pessoa no documentário, com olhar direcionado para alguém da equipe (raramente diretamente para a câmera e para nós), está nessa resistância do verbal em um mundo e tempo nos quais a revelação está associada à evidência e à perícia (não ao testemunho transformado em relato e em relato transformado em retórica).

Revelação = técnica + ciência. 

A palavra seria, portanto, e mais que a imagem, sinal de subjetivação. Resistência às máquinas de visualização . Talvez essa valorização da palavra como documento de verdade, mais que documento, procure na palavra uma retomada de narração e fabulação,  uma compensação para a perda da experiência e de seu compartilhamento, como coloca Walter Benjamin em O Narrador.

A historiadora argentina Beatriz Sarlo, com o conhecimento do processo histórico posterior a Benjamin, contrapõe-se ao diagnóstico de extinção do compartilhamento. Ela localiza a partir dos anos 70 uma inflação do eu, que estaria nos anos 90 e 00 em um processo já de colapso hiper-inflacionário. Isso se manifesta na historiografia e em outras ciências humanas na tercerização da produção de relações apartir de observação e pesquisa para o testemunho direto de quem viveu a experiência. Falar em primeira pessoa, por meio de entrevistas e depoimentos, torna-se o caminho para a verdade.
Voltemos à entrevista no documentário ou ao documentário de entrevista. Nada contra. Colocar-se em relação verbal é fundamental em qualquer experiência. Toda a questão não está na entrevista, mas em sua formalização, em seu ritual, em seu procolo, em um modo dela ser realizada. Em suma, com todos os riscos de emprego do termo, o que importa, rigorosamente, na entrevista é a mise en scène.

Aposentemos o termo entrevista para o documentário. Chamemos de conversa curiosa.  A  troca de nome já esvazia a armadura e a indumentária da entrevista. Objetivo: tirar essa conversa de uma formalidade autômata e anômaloa necessitado da respiração de uma troca e de uma convivência, mais que de um questionário, de modo a tirar as pessoas dos sofás e dos bancos,  às vezes filmadas com a câmera na altura de suas virilhas, com mulheres de saia mais preocupadas em esconder as pernas do que em estar ali  não apenas de corpo presente. Objetivo: desengessar a armadura do quadro, a frontalidade psicopolicial de investigação sobre segredinhos, sobre intimidades, sobre o particular que entrega a chave.

Um pouco mais de lateralidade na troca e menos de frontalidade confessional-testemunhal. Mais a cena e menos o íntimo. O documentário como convivência pública, política, afetiva e efetiva, despido do fetiche do íntimo, do personal, de um certo DNA do afeto, da pele e dos gestos, com câmera indiscretas coladas a poros e rugas para efetuar proximidade.

Mais distância.

Proximidade afetiva não é vampirização do corpo, uma câmera não é uma boca sugadora de pele, sequer um microcóspio. A câmera é a medida de uma relação e de uma proximidade física entre dois corpos. Daí que lentes de aproximação, zooms, essas estratégias que alteram a distância focal, mas mantêm a respeitosa distãncia entre os corpos de quem filma e é filmado, são sempre trapaças da mise en scène

São permissividades técnicas possibilitadoras de vantagens para quem filma e de exposição á vulnerabilidade de quem se coloca diante da câmera, aumentando a responsabilidade de quem filma e também os riscos para quem é filmado

Relativização: tudo depende de quem é filmado.

Respeito, mesmo em cinema, em documentário, assim como na vida, é dialógico. Não se trata de sentimento absoluto e generalizável. A forma de filmar ditadores, torturadores, homofóbos e neonazistas não é a mesma de se filmar outras pessoas e a forma de filmar outras pessoas não é a mesma de filmar tantas outras. 


     2) Tanto no comentária da aluna como na resposta do professor está em jogo um índice de confiabilidade da imagem e da palavra. Crer ou não crer. A imagem e a palavra tornam-se potencial sintomas de trapaças, elementos de desconfiança, que são manifestações só possíveis se tomarmos palavras e imagens como documento de qualquer coisa, não como reação a certa contingência de uma forma talvez só possível de acontecer daquele exato modo naquela contingência específica


                                                                                     ***

"Um campo em que a imagem prolifera é o científico". Frase de Martine Joly, dela apenas porque li no livro (dela) sobre análise de imagem, perspectiva dos signos, que voltou a estar na onda em nossas novidades teóricas tão retrô (em qualquer segmento, do neo-bazanianismo ao neo-semanticismo, dos nouveau-realistas aos nouvelle mise-en-scenéfilos).

A frase é de Joly, mas poderia ser de qualquer um, é uma frase qualquer, informativa-constatitva O que importa nela é perceber como Lumière estava errado quando, frustrado com a falta de utilidade científica do movimento da imagem, decretou seu futuro muito breve e efêmero. A imagem científica, que tanto interessava Bazin, é a imagem do futuro. E talvez o futuro da imagem

Games reproduzindo sondas navegando por artérias e canais intestinais. Ganha quem detectar o tumor. Imagem de dentro.

O cinema já mostrou algumas vezes o corpo humano por dentro, seja com naves científicas miniaturizadas, seja para seguir a trajetória de uma bala, mas o avanço das fronteiras para as imagens científicas, suponho, acarretará uma séerialização e narrativas por dentro do corpo humano, para além dos documentários médicos

Cronenberg ficava do lado de fora


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Um comentário:

  1. Cléber, acho que isso é resultado de alguns "cineastas" que ainda buscam a autoridade para o seu discurso "cinematográfico" na boca de ilustres via "conversa curiosa". Vide "Simonal". Ou (o melhor exemplo) o recente "Tancredo". Silvio Tendler é o bastião disso.

    Acho que tem um outro fator (principalmente no documentário brasileiro): o outro é sempre tratado com uma distância segura. Não há mal-estar na maioria das conversas. Com isso, essa palavra mediada ganha força de fé.

    Aí uma pergunta: será que a influencia do documentário de conversa de Eduardo Coutinho não foi mal assimilada pelos novos cineastas?

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